Morella
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- 22 de fev. de 2024
- 8 min de leitura
Atualizado: 5 de jun. de 2024
Sinopse: Morella e seu amado estão felizes juntos. Mesmo sem amor ou paixão, há uma enorme admiração e companheirismo neste casamento. Discussões intelectuais e leituras em conjunto são um hábito do casal. Então algo muda, a admiração é convertida em repulsa.

Morella
Era com um sentimento de afeto profundo, conquanto singular, que eu considerava a minha amiga Morella. Tendo-a conhecido ocasionalmente há muitos anos, a minha alma, desde o nosso primeiro encontro, ardeu num fogo que eu jamais conhecera; mas esse fogo não era o de Eros e, para meu espírito, a gradual convicção de que eu não podia definir o seu insólito significado, nem regular a sua vaga intensidade, representava um amargo tormento. Ainda assim, nós nos encontramos; e o destino nos uniu no altar; jamais falei de paixão, nem pensei no amor. Ela, no entanto, evitava a sociedade e, apegando-se apenas a mim, fazia-me feliz. É uma felicidade admirar-se; é uma felicidade sonhar.
A erudição de Morella era profunda. Como espero mostrar, seus talentos não eram comuns — sua potência mental era gigantesca. Eu o percebi e, em muitos aspectos, tornei-me seu discípulo. Logo, no entanto, descobri que, talvez por haver-se educado em Presburg, ela me apresentava alguns daqueles escritos místicos que geralmente são considerados meras escórias da literatura alemã primitiva. Esses escritos — não posso imaginar por que razão — constituíam os seus favoritos e constantes estudos e se, com o passar do tempo, eles se tornaram também os meus, devo atribuir tal efeito à singela — malgrado eficaz — influência do hábito e do exemplo.
Com tudo isso, se não me engano, minha razão pouco tinha a ver. Minhas convicções — ou olvido o meu próprio intelecto — não se radicavam jamais em um ideal, nem seria possível descobrir — a menos que eu esteja muito enganado — qualquer vestígio de misticismo no que eu já havia lido, em meus atos ou em meus pensamentos. Persuadido disso, abandonei-me cegamente à orientação de minha esposa e penetrei de todo coração nas complexidades de seus estudos. E, então — quando, debruçado sobre as páginas proibidas, eu sentia um espírito maldito acendendo-se dentro de mim —, Morella pousava a sua mão fria sobre a minha e retirava das cinzas de uma filosofia morta algumas palavras graves e singulares, cujo estranho significado incrustava-se em minha memória. E, depois, hora após hora, eu me demorava ao lado dela, na musicalidade de sua voz, até que, finalmente, aquela melodia ficava impregnada de terror, e uma sombra caía sobre minha alma, e eu empalidecia e estremecia intimamente de entremeio àquelas modulações imensamente sobrenaturais. Desta maneira, a alegria de repente se convolava em Horror, e o mais belo se tornava o mais horrendo, como Hinnom se tornou Ge-Henna.
É desnecessário expressar o caráter exato dessas dissertações que, emergindo dos volumes que mencionei, formaram, por tanto tempo, quase o único tema de conversação entre Morella e eu. Os eruditos, versados naquilo que pode ser denominado moralidade teológica, facilmente o entenderiam, ao passo que os não sábios pouco teriam a assimilar e compreender. O selvagem panteísmo de Fichte; a paligenesia modificada dos Pitagóricos e, acima de tudo, as doutrinas da identidade, conforme defendidas por Schelling, eram geralmente os pontos de discussão que ofereciam maior beleza à imaginativa Morella.